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terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Algumas notas sobre a (escabrosa e inconcebível) proposta de lei de alteração do NRAU


Por Francisco Silva Carvalho
Advogado








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No passado dia 20 de Novembro a Assembleia da República aprovou uma proposta de lei apresentada pelo Conselho de Ministros que vem introduzir diversas alterações ao NRAU e ao Regime Jurídico das Obras em Prédios Arrendados – RJOPA - Decreto n.º 282/XII.

Não pretendo fazer um levantamento de todas as alterações introduzidas – já elencadas mais do que uma vez em notícias nos últimos dois meses – mas centrar-me em duas, que constituem verdadeiros atentados à segurança jurídica, à tutela da confiança, e à legalidade, princípios constitutivos do Estado de Direito.

Acresce que esta Lei, a ser promulgada, quando for devidamente percebida pelo público (que, neste momento, está distraído com assuntos mais empolgantes!) pode significar uma ferida mortal na confiança dos investidores imobiliários na vertente da reabilitação urbana.


As alterações a que me refiro são:

  • Os inquilinos que decidam denunciar os respectivos contratos na sequência da notificação para a actualização das rendas, já podiam pedir uma indemnização por benfeitorias, ainda que essa indemnização estivesse expressamente afastada nos respectivos contratos de arrendamento. Agora podem pedi-la, ainda que as obras a que respeitam tenham sido feitas sem autorização do senhorio;
  • Os arrendatários não habitacionais passam a ter direito a ser indemnizados por benfeitorias e obras não autorizadas aos casos de denúncia para a realização de obras (até agora, a denúncia para obras conferia-lhes exclusivamente o direito a receber como indemnização um ano de rendas actualizadas). 

Estas alterações são uma cedência incompreensível às exigências mais imorais dos comerciantes, que, durante décadas, prosperaram à custa do sacrifício do direito de propriedade dos respectivos senhorios, concorrendo deslealmente com todos os outros comerciantes que tinham de pagar rendas de mercado pelo espaço que ocupavam e contribuindo para a fuga do comércio de qualidade para a periferia das cidades, e para o abandono do parque imobiliário e sua degradação.

Com que direito, afinal de contas, se dá a alguém uma compensação por obras ilegais?

Mas para além da injustiça calamitosa que esta solução comporta, existem efeitos mais perniciosos, que parecem ter escapado ao legislador, ou este não teria, certamente, cometido erro tão grosseiro:

No NRAU de 2012 foi muito criticada a obrigação que passou a recair sobre o proprietário de indemnizar o inquilino que não estivesse disposto a suportar a actualização da sua renda e que, por essa razão, decidisse terminar (denunciar) o contrato de arrendamento. A ideia de uma pessoa ter direito a ser compensada pelo facto de não aceitar pagar uma renda justa parecia, desde logo, inaceitável.

Ainda no domínio dessa reforma, foi mais duramente criticada a opção de que essa indemnização incluísse as benfeitorias realizadas pelo inquilino, ainda que o contrato expressamente estipulasse o contrário. Esta possibilidade foi geradora de grande desconfiança pelos juristas e pelo mercado porque violava, grosseiramente, dois princípios constitutivos do Estado de Direito, que são a segurança jurídica e a protecção da confiança. Uma pessoa tem de poder valer-se do que estabelece nos contratos que celebra quando o conteúdo dos mesmos respeita a legalidade aplicável. Quando isso deixa de acontecer, estão lançadas as sementes do caos. Pela primeira vez sem que tivesse havido uma revolução por meio, o legislador adulterou retroactivamente a intenção das partes, criando uma indemnização onde antes as mesmas tinham definido expressamente que ela não deveria existir. Isto foi – e é – o princípio do descalabro.

O mercado assimilou, no entanto, esta alteração, aceitando-a como um excesso necessário, a título de contrapartida social, numa reforma tão sensível como a do arrendamento urbano. Esta assimilação teve um preço, no entanto. A confiança no Estado ficou irremediavelmente reduzida.

Como se não bastasse, veio agora o Governo criar uma terceira indemnização, de um despropósito tão profundo e tão grave que brada, verdadeiramente, aos céus, e constitui, creio eu, uma brecha inédita no sistema jurídico português.

As consequências imediatas desta alteração são as seguintes:

  • Por um lado, os senhorios, doravante, vão-se abster, em muitos casos, de proceder à actualização dos contratos antigos, uma vez que desconhecem, em absoluto, as obras que os inquilinos fizeram à sua revelia e o custo das mesmas;
  • Os inquilinos vão poder proceder a obras inflacionadas sem qualquer receio, com o fim de intimidar o senhorio, forçando-o a abdicar da actualização das rendas;
  • Cria-se um dano irreversível na confiança dos investidores que, após a reforma de 2012, adquiriram imóveis ocupados com inquilinos antigos, com o intuito de os reabilitar. Estas pessoas projectaram as suas aquisições e investimentos tendo em conta o enquadramento jurídico vigente e o que seria de esperar à luz do mesmo, em particular no que respeita às compensações que teriam de pagar. A estes, tiraram-lhes verdadeiramente o tapete de debaixo dos pés, confrontando-os com a possibilidade de virem a incorrer em despesas impossíveis de determinar.

Esta violação da confiança na legalidade (relativa a uma reforma de 2012!!) por  parte do Estado, é susceptível de gerar a fuga destes e doutros investidores que irão concluir, possivelmente, que não vale a pena investir num país com este grau de insegurança legislativa. E esta fuga de capitais irá registar-se, primeiramente, no sector da reabilitação urbana, precisamente onde esses capitais eram mais necessários.

É altura, portanto, de mudar de mercado. Bons negócios imobiliários. Lá fora. Num país civilizado.

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