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terça-feira, 6 de outubro de 2015

A crise de 2002

Em 2002 a então Ministra das Finanças decidiu terminar o benefício fiscal chamado Crédito Bonificado, mediante o qual os jovens com determinados rendimentos usufruíam da chamada Bonificação de juros nos seus empréstimos contraídos para compra de habitação. Este benefício, que podia ir até 44 % do valor dos juros incluído nas prestações bancárias, tinha uma importância fundamental para uma grande maioria dos compradores de apartamentos para habitação própria, uma vez que os mesmos sacrificavam a quase totalidade da sua restante disponibilidade financeira mensal na compra de habitação.

Foi este o momento em que teve inicio a quebra que levou o sector imobiliário na sua vertente residencial para níveis de venda que ainda hoje estão abaixo dos verificados até aí.

O primeiro reflexo imediato desta medida foi uma quebra na venda de habitação usada, com consequências a jusante na venda de habitação nova. Uma parte significativa dos jovens “absorvia” a oferta de apartamentos usados, cuja venda viabilizava, também na maioria dos casos, a compra dos apartamentos novos.


Se este primeiro “abalo” foi pouco sentido, as medidas preconizadas pelo Director Geral dos Impostos em 2004, para combate à evasão fiscal no sector, já tiveram um maior impacto. Até este momento, a grande maioria dos apartamentos vendidos em Portugal era escriturado por um valor inferior ao valor real da venda. Esta situação beneficiava o vendedor em termos de mais valias imobiliárias, ou no caso das empresas, em sede de IRC, e beneficiava o comprador em termos da diminuição do valor da SISA (actual IMT) paga antes da escritura. Basicamente, quem pretendia escriturar a venda de um imóvel pelo valor real da venda, tinha poucas probabilidades de sucesso face à concorrência desleal praticada pela grande maioria (quase totalidade ?) dos vendedores. Se até aí as Instituições de Crédito ainda emprestavam valores acima do valor de compra, de um momento para o outro deixaram de o fazer, e o comprador “típico” deixou de ter meios para suportar a carga fiscal associada à compra. Esta atitude dos Bancos deveu-se fundamentalmente à estratégia utilizada pela Direcção Geral de Finanças para “apanhar” os prevaricadores. Em vez de questionar os vendedores através da escritura, questionou os compradores através da comparação entre o valor dos empréstimos e o valor declarado da compra. E dadas as grandes diferenças, facilmente concluía pela fuga aos impostos.

Este segundo “abalo” foi o inicio do fim dos edifícios vendidos na totalidade antes de estarem prontos. E o começo de algumas medidas que tentaram sustentar a quebra nas vendas, mas que mais não fizeram do que conduzir à actual situação dos Bancos portugueses.

A primeira medida foi criada para benefício dos compradores e foi um produto chamado “Troca de Casa”. Basicamente permitia que o comprador adquirisse um novo imóvel sem ter de vender o imóvel usado, dando um prazo até 24 meses para o fazer. Ou seja, durante 2 anos o comprador iria tentar vender a casa anterior pagando duas prestações reduzidas referentes aos dois imóveis que detinha. O que aconteceu a seguir foi que muitos não conseguiram mesmo vender a sua casa antiga e tiveram de a colocar no mercado de arrendamento, com os riscos inerentes. Os que não tiveram sucesso foram os primeiros a falhar com as suas obrigações com o Banco.

A segunda medida foi concedida aos Promotores imobiliários e consistiu na “autorização” para pagarem empréstimos à construção antigos, com o dinheiro recebido para um novo projecto. Ou seja, uma vez que muitos deles começaram a não conseguir vender os seus apartamentos novos, começaram a não poder liquidar os empréstimos contraídos para a construção. Assim pediam um novo empréstimo para um novo projecto e com ele liquidavam o anterior empréstimo. É bom de ver que esta estratégia de “atirar o lixo para debaixo do tapete” resultou numa bola de neve, pois o nível de vendas não recuperou para os valores pré 2002.

Com os acontecimentos do verão de 2008, agravou-se o já regressivo mercado imobiliário residencial, quando os bancos deixaram de emprestar a totalidade do valor da avaliação de um imóvel. Se a maioria dos compradores necessitava da incluir no empréstimo um valor para pagar a SISA (actual IMT), a Escritura, e outras despesas, quando o valor concedido deixou de ser suficiente para pagar o imóvel, uma parte significativa da procura desapareceu e “virou-se” para o mercado de arrendamento. E com isso, contamos com cerca de 13 anos de mercado em quebra ou estagnado, muito longe da dinâmica verificada entre 1992 e 2002.

É assim possível compreender que a actual crise do sector tem início em 2002 e não em 2008 com a chamada “crise do subprime” agravada com a queda do Banco de Investimentos Lehamn Brothers. Não critico as medidas acima referidas, e que conduziram a uma maior transparência, justiça fiscal e condições de mercado próximas da realidade, excepto, a suspensão imediata em 2002 da Bonificação de Juros, pois este é um sector com um pipeline de longa duração, para o qual medidas imediatas criam efeitos disruptivos que não podem ser corrigidos, ou seja, quando esta decisão foi posta em prática, muitos projectos estavam a decorrer, com base numa determinada perspectiva de vendas e dinâmica, que de um momento para o outro foram postas em causa.

Actualmente o excesso de oferta em relação à procura não permite prever uma melhoria das condições do mercado residencial para os investidores e promotores imobiliários, pelo que apenas o crescimento da população poderá alterar esta situação de forma não fictícia. E este é um facto que não ocorre de um momento para o outro mas sim em várias gerações. Para mal de quem investiu.

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Por Carlos Leite de Sousa
Co-fundador do Streetics

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