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terça-feira, 5 de abril de 2016

O regime do reinvestimento em IRS para a alienação e aquisição de habitação própria e permanente – Parte II

Depois de, em texto anterior, ter analisado as particularidades do regime do “reinvestimento para trás”, abordarei agora duas outras questões cujo tratamento fiscal suscita dificuldades de acesso ao regime do reinvestimento em sede de IRS, as quais foram analisadas por um Tribunal Arbitral instituído junto do Centro de Arbitragem Administrativa no processo n.º 84/2012-T.

I – Amortização de empréstimo contraído para a construção de imóvel

Como é sabido, o reinvestimento do valor de realização que deriva da alienação do “imóvel antigo” na aquisição ou construção de “imóvel novo”, ambos destinados à habitação própria e permanente, possibilita a exclusão de tributação em IRS das mais-valias imobiliárias geradas.

Por regra, quando existe um valor de realização a reinvestir este tem de ser previamente deduzido da amortização de empréstimo contraído para a aquisição do imóvel “antigo”. Ou seja, o dever de reinvestir é sobre o montante do preço de venda do imóvel “antigo” abatido das responsabilidades inerentes ao pagamento do empréstimo que esteve associado à respectiva aquisição, i.e., apenas são naturalmente reinvestíveis os meios líquidos sobrantes.

Todavia, a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) tem entendido que só qualifica para tal regime a amortização de empréstimo quando o mesmo tenha sido contraído para a compra do “imóvel antigo”, e não para a respectiva construção, excluindo os casos em que o sujeito edificou sobre terreno por si adquirido.

A decisão arbitral referida, no respectivo ponto 2.2.2, sanciona este entendimento, considerando que a amortização do empréstimo contraído para a construção do “imóvel antigo” nunca poderia ser aceite para efeitos de reinvestimento, tendo em conta que as normas de exclusão de tributação devem ser interpretadas estritamente e sem recurso a analogia, e que «o legislador refere expressamente “aquisição”».

A meu ver, tal interpretação peca por excessivamente literal, pelo que a amortização de um empréstimo à construção cujo montante seja igual ou aquém do valor global desta, devidamente comprovado à luz dos respectivos custos, deverá ser aceite.

Desde logo, o elemento teleológico de interpretação implica que a mesma não atente contra a protecção fiscal que é concedida ao direito de propriedade da habitação própria e permanente, para mais na sua modalidade de auto-construção, que mereceu tutela expressa no artigo 65.º, n.º 2, alínea d), da Constituição.

Acresce o elemento de interpretação sistemático. Dispõe o artigo 46.º, n.º 3, do Código do IRS: “O valor de aquisição de imóveis construídos pelos próprios sujeitos passivos corresponde ao valor patrimonial inscrito na matriz ou ao valor do terreno, acrescido dos custos de construção devidamente comprovados, se superior àquele” (itálicos meus). Ora, para o mencionado Código, os imóveis construídos não deixam de ser adquiridos e de dispor de um valor de aquisição, ainda que compósito. Todos os imóveis são iguais; não há imóveis mais adquiridos do que outros…

Deve, pois, até por razões de neutralidade fiscal no tratamento das diferentes formas de acesso à habitação própria, considerar-se que a amortização de empréstimo contraído para a aquisição do “imóvel antigo” contempla em si, entre outros, o caso da respectiva construção.

II – Impacto da situação pessoal no regime do reinvestimento

Na mesma decisão arbitral foi analisada uma outra questão, respeitante ao facto de o “imóvel antigo” ter sido adquirido no estado civil de solteiro, e de o “imóvel novo” ter sido já adquirido como bem comum por ambos os cônjuges na constância do matrimónio.

Enquanto Advogado sou sistematicamente confrontado com o facto de o sistema informático da AT não estar preparado para lidar com situações em que exista alteração do estado civil do(s) sujeito(s) passivo(s) no decurso do prazo legal para reinvestimento. Tais alterações recorrentemente geram divergências nos elementos declarados, e liquidações adicionais ilegais contra as quais os contribuintes têm de reagir com os constrangimentos daí advenientes, conforme vi suceder, por exemplo, com um contribuinte casado que declarou a intenção de reinvestimento de valor de realização de bem próprio em declaração apresentada conjuntamente com o respectivo cônjuge e reinvestiu em ano em que se encontrava já divorciado. Tal constitui um obstáculo à plena e correcta aplicação do regime do reinvestimento, que a AT deveria solucionar – estando ainda por saber, e testar, se as recentes alterações ao regime de tributação-regra dos cônjuges em IRS, que passou a ser o da tributação separada a partir do ano de 2015, resolveram definitivamente a questão. 

O Tribunal Arbitral foi a este propósito esclarecedor e reiterou a recomendação nesta matéria do Provedor de Justiça (n.º 18/A/2012), determinando no ponto 2.2.4 da respectiva decisão: “a finalidade extrafiscal do disposto nos nºs. 5 e 6 do artigo 10º do CIRS é claramente a de promover o reinvestimento na aquisição, construção ou melhoramento de imóvel afeto à habitação própria e permanente do agregado familiar, sem fazer qualquer alusão a casamento, tipo de regime de casamento ou qualquer outra condição. Se o legislador não estabelece tal distinção, não está o aplicador da norma habilitado a fazê-la”.

Efectivamente, a finalidade da exclusão de tributação nada tem que ver com a situação pessoal do sujeito passivo, mas sim com a protecção fiscal do direito à habitação própria e permanente do mesmo e do correspondente agregado familiar. 

PS: Agradeço aos meus Colegas Drs. Ana Rita Pereira e Carlos Alcântara Neves o auxílio na elaboração deste texto.

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Por Ricardo da Palma Borges
Advogado (Especialista em Direito Fiscal pela Ordem dos Advogados)
Sócio-Administrador da RPBA (Ricardo da Palma Borges & Associados - Sociedade de Advogados, R.L.)
ricardo@rpba.pt

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