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terça-feira, 24 de maio de 2011

Mercado de Habitação - perigos vs. oportunidades


Por João Nunes
Director-Coordenador de Consultoria
Colliers International







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Há algumas semanas tomei conhecimento da história do Ricardo (nome fictício). É um veterinário na casa dos 30 anos que concluiu a sua licenciatura há aproximadamente dez anos. Ficou sem emprego há aproximadamente 1,5 anos e nos meses seguintes tentou sem sucesso arranjar outro trabalho.

Apareceu-lhe uma oportunidade de trabalho no Brasil e sem hesitar, fez as malas e abraçou de corpo e alma o novo desafio. Aparentemente foi daqueles que teve sorte. Bem recebido no Brasil o seu trabalho de veterinário tem sido reconhecido e a vida começou-lhe a correr bem. Vive numa casa arrendada, com renda razoável e não quer voltar a ouvir falar em comprar uma casa nos tempos mais próximos.

Entretanto, com a saída apressada de Portugal, Ricardo atrasou as prestações da casa. Entrou em incumprimento. O Banco tentou entrar em contacto com o Ricardo mas não conseguiu. Por fim os serviços de contencioso, através de uns familiares, conseguiram o seu contacto.

Ricardo recebeu com um misto de emoções a chamada do banco. O assunto magoava-o e preocupava-o. Tinha uma série de prestações em dívida. A casa que estava à venda há muitos meses não se transaccionava. Potenciais interessados não conseguiam arranjar financiamento bancário. Ricardo tinha pago as prestações durante quase dez anos. Este facto dava alguma “margem” para a resolução do assunto. Foi-lhe feita uma proposta para entregar a casa ao banco como dação em pagamento. Ricardo ficaria com toda a sua situação financeira e bancária regularizada em Portugal. O seu nome deixaria de constar na “lista negra” do banco de Portugal”. Ricardo aceitou. A solução permitia libertar-se de problemas e recordações muito amargas. Permitia também deixar o passado “limpo” e concentrar-se no que lhe está a correr bem na vida. No banco também ficaram contentes. Conseguem vender a casa assegurando um financiamento de 100 % ao novo comprador. Com um preço “simpático” e 100% de financiamento, é relativamente fácil encontrar novos compradores à procura de “oportunidades”.

O caso do Ricardo não é único e actualmente existem centenas de “Ricardos” por mês. Eles constituem uma percentagem elevada nos casos de dação em cumprimento que os Bancos hoje registam. Nem todos conseguem o sucesso no estrangeiro, nem todos emigram. Nem todos têm a possibilidade e as condições de fazer este tipo de acordos com a Banca. Há casos piores e mais dramáticos (para os particulares e para os Bancos).

Porque escolhi então contar esta história, aqui e agora? Porque acho que ela nos permite fazer reflectir sobre os erros do passado em termos de política habitacional em Portugal. Simultaneamente permite-nos ter consciência de que o adiar das soluções lógicas e racionais tem um custo. E são “os Ricardos” (apenas alguns dos) que estão a pagar esse preço.

O mercado de habitação tem actualmente um problema incontornável que é o da dificuldade de obtenção de crédito para compra de casa própria. Existem vários “acordos” entre compradores e vendedores para aquisição de habitação, quer nova quer usada. Mas para que se possa dar cumprimento a esses acordos é necessário financiamento bancário ou a venda da anterior casa (e para a qual o comprador também precisa de financiamento).

Esta travagem muito brusca, demasiado rápida, do financiamento reduziu muito o mercado de compra e venda de habitação (nova e usada).

O drama é que a alternativa que o “Ricardo” teve no Brasil, no nosso país, quase não existe. O mercado de arrendamento habitacional é residual e pouco expressivo. O problema, actualmente, reside do lado da oferta. Existe um incumprimento relevante do lado dos inquilinos, o sistema judicial não assegura que os senhorios sejam ressarcidos dos prejuízos em tempo útil e a posição deste em termos contratuais não é equilibrada.

Esta situação traduz-se num prémio de risco considerável que os senhorios colocam nas rendas. Assim a oferta no mercado de arrendamento regista preços elevados e muitas vezes é constituída por imóveis de qualidade sofrível.

A actual conjuntura económica, a redução significativa do acesso ao mercado de compra e venda, tornaram imperioso o desatar do “nó górdio” no arrendamento habitacional em Portugal.

As pessoas vão precisar de habitação para viver. Financiar a aquisição de habitação própria não parece ser viável ou desejável para o país. O endividamento dos particulares já é muito elevado e deve-se, em grande medida, à compra de habitação própria.

Um das soluções lógicas e racionais passa pela dinamização do mercado de arrendamento através de leis equilibradas e equitativas em que a redução do risco associado permita a diminuição das rendas e a entrada de mais (e melhores) imóveis no mercado.

Os benefícios económicos são incontestáveis. Contribui para reabilitar o centro das cidades, para criar emprego, para dinamizar o investimento, para tornar o mercado do trabalho mais flexível (através da mobilidade das pessoas, etc.). Voltando ao exemplo do Ricardo, se tivesse tido a opção de arrendar casa, será que tinha comprado casa?

Durante décadas, talvez de forma mais acentuada nos últimos meses, inúmeros técnicos, consultores e agentes do mercado têm apontado o problema e apresentado soluções. Mas a verdade é que as várias alterações que se seguiram ao “congelamento das rendas de Salazar em 1949” tiveram mais efeitos semânticos que práticos. E a prova desse facto é que o mercado de arrendamento continua “sem funcionar” de forma minimamente aceitável.

A “troika” que esteve recentemente em Portugal percebeu este problema. O programa acordado com o governo português inclui vários pontos que dinamizarão o mercado de arrendamento habitacional (agilização de despejos em casos de incumprimento, equilíbrio de posição contratual senhorio-inquilino, aumento do IMI e por essa via deixar de compensar manter as casas fechadas, etc). São medidas “horizontais” que empurram para o empreendorismo, para o fomento da mobilidade das pessoas, etc. Mas eleitoralmente, podem custar “votos”? Sem dúvida, vai ser precisa coragem política.

É que a implementação do acordo terá se ser feita pelos (próximos) dirigentes políticos portugueses. E aqui entra o receio e a expectativa. Receio de se voltar a produzir legislação formalmente muito “bonita” mas sem efeitos tangíveis como o que foi prática corrente nas últimas décadas em matéria de arrendamento habitacional. Expectativa porque desta vez existe alguém do exterior a “verificar o que é feito”. E também porque o país e os “Ricardos” precisam e merecem essa “coragem”.

Enquanto esperamos, nestes tempos excepcionais que vivemos é preciso ter uma “mentalidade oriental”. Na sua milenar sabedoria a palavra “crise” em chinês, é representada por dois ideogramas. Um significa “PERIGO” e outro significa “OPORTUNIDADE”. Os nossos sentidos devem estar alerta quer para reconhecer e evitar os perigos quer para poder aproveitar as oportunidades únicas que se nos deparam. Esperemos que os legisladores e decisores políticos também.

Boas oportunidades (imobiliárias) para todos.

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro João Nunes,

Li atentamente o seu texto não há duvida que em muito estamos de acordo: A quase inexistência de um mercado de arrendamento no nosso país deriva do pobre enquadramento legal e fiscal que o caracteriza e para introduzir as alterações verdadeiramente necessárias será necessária muita coragem politica. Para tal bastará analisar cuidadosamente as propostas sobre esta matéria previstas no último PEC que não passavam de aquilo a que vulgarmente chamamos “baralhar e voltar a dar”.

De qualquer forma, e ainda que fortemente apologista do mercado de arrendamento, não sou fundamentalista e acredito que mesmo hoje a compra não é forçosamente uma opção errada, apenas deve requerer alguma, senão muita prudência e ponderação.

Parece-me ter sido precisamente isto que terá faltado ao “Ricardo”, especialmente no momento da compra e da partida para o Brasil, o que me leva a colocar duas simples questões:

•Por que valor terá o “Ricardo” adquirido sua casa para que, passados 10 anos não a terá conseguido vender nem de forma a saldar as suas contas com o banco?
É que para além de 10 anos de redução de capital em divida, os valores praticados nesse tempo eram bastante competitivos. Noto que por esta razão, grande parte das transacções efectuadas nos dias de hoje são precisamente com imóveis adquiridos nesses anos.

•Porque razão o “Ricardo” recebe a chamada do banco com um misto de emoções ao ser informado que estava em incumprimento e o seu nome constava agora na “lista negra” do banco de Portugal”? Sem ter vendido a casa até ao momento da sua partida não teria sido no mínimo elementar lembrar-se de pagar as prestações mensais e dar os seus novos contactos ao banco?

Caso o Ricardo tivesse optado pelo arrendamento e com a “saída apressada” de Portugal, provavelmente não se teria lembrado de rescindir o seu contrato, dar os seus novos contactos ao senhorio ou pagar as rendas que entretanto se venciam. É certo que esta situação não colocaria o seu nome em nenhuma lista negra (a não ser a do senhorio) mas verificar-se-ia à mesma um incumprimento que só se resolveria pagando integralmente o valor das rendas em falta.

Concluo reforçando que o arrendamento trará grandes benefícios para todos e que a combinação entre a dificuldade de obtenção de crédito com a miserável oferta que caracteriza este mercado deixará muitos com poucas opções, porém, a compra poderá em alguns casos manter-se como a melhor opção desde que exista ponderação e prudência.

Abraço,
"Ricardo" Roquette – Nome autêntico