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terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Hospedagem e Alojamento Local

A ideia que vou procurar expor, de forma sucinta, neste artigo, é a seguinte: o arrendatário ou o proprietário de uma fracção afecta a habitação própria, têm o direito de ceder quartos a hóspedes, no regime de alojamento local, independentemente da vontade do senhorio (a menos que expressamente prevista no contrato), ou dos condóminos.

Esta afirmação pode parecer controversa à partida, mas tem uma cobertura legal mais firme do que as pessoas podem, à partida, supor.

Historicamente, em Portugal, muitas pessoas recebiam hóspedes nas suas casas, oferecendo alojamento em troca de dinheiro, constituindo essa actividade uma fonte de rendimento normal nas suas economias domésticas. Essa faculdade constituiu, no nosso ordenamento jurídico, desde 1930 até ao Regime do Arrendamento Urbano, de 1990, um direito imperativo (sem possibilidade de estipulação de cláusula em contrário) dos arrendatários, que podiam explorar comercialmente quartos no seu locado, proporcionando a terceiros alojamento e serviços conexos, até ao máximo de 3 hóspedes.

Entendia-se mesmo que a possibilidade de oferecer alojamento pago a hóspedes era uma inerência imperativa do direito de habitação, daí que não fosse uma faculdade negociável. 

Com a entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano (antigo RAU – por oposição ao Novo RAU “NRAU”), em 1990, o que era uma faculdade imperativa do arrendatário, passou a estar na disponibilidade das partes, prevendo-se a possibilidade de disposição contratual que restringisse ou proibisse a hospedagem.

De todo o modo, desde então e ainda hoje, o art. 1093.º do Código Civil estipula que, para além do arrendatário (e sem prejuízo de disposição em contrário no contrato de arrendamento) podem residir no locado três hóspedes. E define hóspedes como aquelas pessoas “a quem o arrendatário proporcione habitação e preste habitualmente serviços relacionados com esta, ou forneça alimentos, mediante retribuição”.

Esta é a norma geral, que se aplica a menos que seja expressamente afastada pelas partes no contrato de arrendamento.

Ora, o muito recente regime jurídico do Alojamento Local - consagrado no Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto - veio trazer para o seu âmbito de aplicação e regulação esta figura da hospedagem. Vejamos o que diz o art. 4.º deste diploma legal:

2 - Presume-se existir exploração e intermediação de estabelecimento de alojamento local quando um imóvel ou fracção deste: 
a) Seja publicitado, disponibilizado ou objecto de intermediação, por qualquer forma, entidade ou meio, nomeadamente em agências de viagens e turismo ou sites da Internet, como alojamento para turistas ou como alojamento temporário; ou 
b) Estando mobilado e equipado, neste sejam oferecidos ao público em geral, além de dormida, serviços complementares ao alojamento, nomeadamente limpeza ou recepção, por períodos inferiores a 30 dias”.

Todos os elementos caracterizadores da figura tradicional da hospedagem são incluídos nesta definição, nomeadamente a disponibilização de dormida e serviços complementares ao alojamento (como a limpeza ou a alimentação), mediante remuneração.

De onde se conclui que o arrendatário que pretenda exercer legalmente a exploração económica de um ou mais quartos na fracção que arrenda, ao abrigo da faculdade de hospedagem que lhe é assegurada pelo Código Civil, terá agora, em princípio, de conformar a sua actividade com a regulamentação constante deste Decreto-Lei. 

E aqui depara-se com um problema potencial:

O registo dos estabelecimentos de alojamento local é efectuado mediante mera comunicação prévia, dirigida ao presidente da câmara municipal respectiva. Essa comunicação, caso a exploração do alojamento local seja feita por arrendatário – e não pelo proprietário da fracção – deve obrigatoriamente ser acompanhada de “cópia simples do contrato de arrendamento e, caso do contrato não conste prévia autorização para a prestação de serviços de alojamento ou subarrendamento, documento autenticado contendo tal autorização do senhorio do imóvel, no caso de o requerente ser arrendatário do imóvel”.

Para evitar que se suscitem questões relativas à validade da comunicação desacompanhada deste documento, nos casos em que o contrato de arrendamento se limite a não restringir ou proibir o alojamento local, na modalidade de hospedagem, deverá o arrendatário, ao enviar a comunicação prévia ao presidente da câmara municipal, fazer a menção de que, tratando-se de estabelecimento de hospedagem, não é necessário documento contendo a referida autorização expressa, porquanto essa autorização já resulta expressamente da conjugação do contrato com o art. 1093º, n.ºs 1 e 3 do Código Civil. 

Caso a câmara municipal, ainda assim, recuse a comunicação ou o presidente cancele o registo por falta de autorização expressa, estar-se-á perante uma actuação ilegal da administração pública, podendo o interessado recorrer aos tribunais administrativos para fazer valer o seu direito, designadamente recorrendo a uma providência cautelar que determine a imediata autorização (provisória, até à sentença definitiva) da actividade de hospedagem no locado.

No início do artigo referi também a faculdade de o proprietário utilizar a sua fracção do condomínio para exploração no regime de alojamento local – sempre na modalidade de hospedagem - independentemente da vontade dos outros condóminos. 

A este respeito, é premente o recente acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que parece dispor em sentido contrário, tendo validado a deliberação da assembleia de condóminos que proibia a actividade de alojamento local nas fracções autónomas destinadas a habitação, por considerar que “destinando-se a fracção autónoma, segundo o título constitutivo, a habitação, não lhe pode ser dado outro destino (alojamento mobilado para turistas) sendo para tanto irrelevante o licenciamento do local para a actividade comercial acima referida por aquelas entidades”.

Não se nega que, no caso concreto, a decisão do Tribunal tenha sido correcta, uma vez que, segundo se determinou na matéria de facto assente, o proprietário da fracção não a usava para habitação, destinando-a exclusivamente à actividade comercial de exploração de alojamento local.

No entanto, contesto a tese de que toda a exploração de alojamento local choca com a afectação para habitação de uma determinada fracção, uma vez que, como vimos, a faculdade de exploração económica, parcial, da habitação própria para hospedagem de terceiros é e sempre foi, ao longo das décadas, reconhecida pelo legislador como uma faculdade inerente ao próprio direito de habitação.

E embora num caso se esteja a tratar do direito do proprietário de retirar proveito económico da sua fracção, providenciando alojamento a hóspedes e, noutro, do direito do arrendatário, o facto de o legislador ter querido sempre conferir esse direito ao arrendatário habitacional leva à conclusão de que, por maioria de razão, a mesma faculdade deve existir no proprietário de uma fracção destinada a habitação, sendo indiferente a opinião dos restantes condóminos sobre a matéria.

Esta é uma mera reflexão sobre as implicações da figura tradicional da hospedagem na casa de habitação própria, no contexto actual do alojamento local. Não pretende ser uma conclusão final, nem um conselho jurídico, mas uma simples opinião.

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Por Francisco Silva Carvalho
Advogado

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