Vivemos, actualmente, um verdadeiro estado de sítio no Direito do Imobiliário.
É de tal forma assim, que se vai tornando legítima a interrogação se Direito e Imobiliário são realidades que de facto existam no mesmo plano. O Legislador tem procurado, com particular afinco, assegurar-se que não.
Com efeito, valores, princípios e direitos que tomávamos por adquiridos – no enquadramento sólido de um Estado de Direito – como a propriedade privada, a segurança jurídica, a tutela dos direitos adquiridos, das relações jurídicas celebradas ao abrigo da lei, foram, ao longo dos últimos dois anos (2017 e 2018), abalados por sucessivas leis que puseram em causa, de forma talvez definitiva, a confiança no Estado por parte dos cidadãos nacionais e dos investidores estrangeiros (de quem a nossa economia depende tanto).
Essa traição, pelo Estado, da confiança dos cidadãos da tutela dos seus direitos, acelera o desgaste dos fundamentos em que assenta a nossa sociedade. Desgaste esse já avançado, devido, em grande parte, ao despudor com que governantes procederam, décadas a fio e (até agora) com total impunidade, à gestão da coisa pública com vista ao enriquecimento privado.
O Direito, que obedecia a princípios próprios, a uma lógica sistemática construída e desenvolvida ao longo de dezenas, centenas de anos, com raízes em institutos e conceitos milenares (do Direito Romano), é hoje uma manta de retalhos, sem coerência estrutural, lógica ou sistemática, ditada por interesses de governantes que não vêem para além dos cálculos eleitoralistas.
Os juristas aprendiam, na Faculdade de Direito, que o Legislador (uma entidade abstracta, mas determinável) era pessoa sábia, inteligente, justa, com profundo conhecimento do Direito, sensata, que se sabia exprimir da melhor maneira. Esta configuração do Legislador era importante para a tarefa de interpretação da Lei. Apurando o intuito do Autor (Legislador), era possível ao intérprete corrigir, na Lei, as inevitáveis falhas, imprecisões, resultados menos justos.
Porém, esse Legislador morreu. Assassinado pelos mencionados interesses eleitoralistas de governantes e deputados, foi substituído por um monstro: um analfabeto impulsivo, egoísta, incoerente e, inevitavelmente, profundamente injusto.
Nas leis actuais, vai sendo raro encontrar uma coerência sistemática, ou mesmo lógica interna. O mais comum é depararmo-nos com lacunas gravíssimas, grosseiras soluções ad hoc, ou então, erros deliberados com vista a acautelar interesses particulares.
Feitas estas considerações, situemo-nos no plano concreto: a que leis nos estamos a referir?
Suspeitamos que podiam ser tantas e tão diversas quanto as áreas de trabalho de quem se decidisse pronunciar sobre o tema, pois acreditamos que o analfabetismo do actual Legislador é transversal a todos os assuntos, maiores ou menores, que interessem - ou que não interessem – à Sociedade.
Neste caso, como referido, a atendendo ao fórum em que estamos, falamos de quatro diplomas concretos que vieram destruturar o já destruturado enquadramento jurídico da utilização e exploração de prédios urbanos, a saber:
Lei 43/2017, de 14 de Junho – que alarga vários prazos previstos no NRAU
As injustiças consagradas neste diploma são várias:
- os proprietários de casas arrendadas a inquilinos com um RABC inferior a 5RMNA (€ 38.990, um valor manifestamente superior ao rendimento médio do agregado familiar português - € 31.390,50, conforme o PORDATA e, por conseguinte, determinado por forma a abarcar a generalidade dos arrendamentos e não situações dignas de tutela excepcional), que tinham a expectativa legítima de ver terminados os contratos ao fim de um período de 7 (5+2) anos, vêem agora esse prazo alargado para 13 (8+5) anos.
A actualização da renda para o tecto máximo permitido por lei (1/15 do VPT, que ainda assim é mera ficção administrativa, desfasada do valor de mercado), que era possível ao final de 5 anos, só vai ocorrer ao final de 8 anos. Uma vez mais, os senhorios arcam sozinhos com o preço da habitação social dos inquilinos.
- quando os inquilinos tenham idade igual ou superior a 65 anos e o RABC inferior a 5RMNA o cenário é mais catastrófico, porque a actualização da renda (para os ditos 1/15 do VPT), que os senhorios esperavam obter ao fim de 5 anos, agora só vai ser possível ao final de 10 anos;
- Nos arrendamentos não habitacionais, quando o inquilino é uma microentidade (conceito tão amplo que abarca a maior parte dos estabelecimentos, porquanto inclui todos os que tenham um volume de negócios inferior a 2M€ ou menos de 10 trabalhadores), os senhorios tinham a expectativa legítima de terminar o contrato passados 8 (5+3) anos. Agora isso só é possível ao fim de 15 (10 + 5) anos
Este alargamento de prazos, absolutamente arbitrário, destorcedor do mercado e lesivo dos direitos dos proprietários quebra definitivamente a confiança, não só no enquadramento legal do arrendamento urbano (conforme configurada na reforma do NRAU de 2012) como em qualquer regime jurídico, criando (ou devendo criar) uma insegurança absoluta, generalizada, na demarcação de qualquer relação jurídica e nas expectativas que daí advenham. Porque se as vítimas de hoje são os proprietários, amanhã podem ser qualquer grupo social sem valor eleitoral.
Lei 42/2017, de 14 de Junho – que estabelece um regime de reconhecimento protecção dos estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social (as “lojas históricas” de que tanto se tem falado).
Esta lei permite às Câmaras Municipais, consoante as cores políticas e os interesses dos titulares dos seus órgãos, delimitar com ampla liberdade que estabelecimentos são dignos da classificação como “lojas históricas”.
Nesses estabelecimentos, o senhorio que tivesse actualizado o respectivo contrato no âmbito do NRAU, e tivesse agora a expectativa legítima de, ao final do prazo de 5 anos, se poder opor à respectiva renovação, abrindo a possibilidade de, ao fim de várias décadas de vinculismo e congelamento de rendas, colocar no mercado livre a sua propriedade, vê agora essa faculdade congelada por mais cinco anos. Que facilmente poderá ser alargada por mais 5, 10, 15 ou 100 anos, se essa for a intenção do Legislador, que já mostrou não obedecer a qualquer limite que não o ditado pelos seus interesses.
Também aos senhorios fica agora vedada a denúncia dos arrendamentos para a realização de obras de remodelação ou restauro profundo, o que constitui uma violação aberta da segurança jurídica (das relações constituídas e das respectivas expectativas jurídicas) e do direito de propriedade privada. Sem falar do contrassenso que isso significa para o ímpeto de reabilitação urbana que tão grandes benefícios trouxe para as nossas cidades e economia. E o vício que é para o mercado protegerem-se e congelarem-se os arrendamentos de lojas que não têm capacidade para sobreviver em regime de concorrência livre com os seus pares, os quais têm de suportar rendas de mercado para vender os mesmos produtos.
Lei 30/2018, de 16 de Julho – que suspende os processos de denúncia e de despejo quando os inquilinos tenham idade igual ou superior a 65 anos ou incapacidade ou deficiência superior 60%.
Eis aqui uma das maiores aberrações legislativas de que há memória
Naturalmente que, num contrato celebrado com prazo certo, o senhorio tem de ter o direito de se opor à renovação para o termo do prazo em curso. De outro modo, de que vale a autonomia das partes? A vontade livremente consagrada num contrato? Agora, se o inquilino tem, ou se entretanto cumpriu, os 65 anos, ou padece da deficiência legalmente determinada, ao senhorio fica-lhe vedada a possibilidade de se opor à renovação. Trata-se de uma imposição característica de um regime autoritário, nunca admissível num Estado de Direito.
A denúncia, na maioria dos contratos com inquilinos nestas condições, só era legalmente possível com fundamento na realização de obras de remodelação ou restauro profundo em que o senhorio assegurasse o realojamento do inquilino em condições análogas, na mesma freguesia ou em freguesia limítrofe.
Como a lei tornava impossível a contratação, pelo senhorio, no regime de mercado livre, de um arrendamento em condições análogas ao que beneficiava o inquilino, aqueles que, com vista a reabilitar os respectivos prédios, tencionavam denunciar os respectivos contratos, tiveram de comprar casas onde realojar os ditos inquilinos. Prepararam planos de negócios, endividaram-se, traçaram as suas expectativas de acordo com os limites apertados que a lei lhes concedia. E de repente o Legislador tira-lhes o tapete, impedindo-os de concretizar os investimentos projectados. Cremos que a natureza aberrante desta medida é autoevidente.
Da Lei 62/2018, de 22 de Agosto – que introduz alterações no regime jurídico da exploração de estabelecimentos de Alojamento Local.
O Legislador vem permitir aos condomínios alterar – por via do seu constrangimento – o fim que um proprietário pode dar ao seu apartamento. Este tipo de limitação era historicamente admissível, com algumas limitações (inerentes à natureza do direito de propriedade) quando consagrada no momento anterior à decisão de compra (normalmente, na licença de utilização ou no título constitutivo da propriedade horizontal). Após a compra, qualquer constrangimento do direito de uso da propriedade que não decorra dos limites inerentes a esse direito deve ter-se por inadmissível. Mas o Legislador fê-lo. Resta a esperança de que o Tribunal Constitucional venha a pronunciar-se, no futuro, pela inconstitucionalidade desta limitação.
Pior ainda, é criada aqui a possibilidade de os Municípios delimitarem, arbitrariamente, zonas de contenção com a inerente restrição ou proibição de abertura, nessas zonas, de estabelecimentos de alojamento local. Aqui, coagido pela pressão da esquerda radical que sustenta o Governo, o Legislador decidiu atacar uma das “galinhas dos ovos de ouro” do ressurgimento pontual da nossa economia.
É inacreditável falar de gentrificação e do afastamento dos jovens dos centros em cidades, como Lisboa e o Porto, cujos centros históricos eram, há menos de dez anos, aglomerados de prédios e ruínas em acentuado processo de decadência, sem condições de salubridade, onde apenas habitavam os velhos titulares dos arrendamentos vitalícios com rendas congeladas, e os comércios e escritórios decrépitos daqueles que se habituaram a medrar à conta do esvaziamento do direito de propriedade dos seus semelhantes. Sobretudo quando os municípios em causa são e eram os maiores proprietários de prédios devolutos ou semidevolutos, em ruínas ou processo de decadência.
Ficam aqui algumas considerações sobre as mais recentes leis que estilhaçaram o que pudesse ainda restar da segurança ou da confiança dos cidadãos no enquadramento jurídico do arrendamento urbano.
Algum cínico terá, um dia, definido o Direito como “uma arma para ajudar os amigos, perseguir os inimigos e aplicar aos indiferentes”. Hoje, é o próprio Legislador quem parece pensar assim.
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Por Francisco Silva Carvalho
Advogado
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