Lisboa enfrenta um momento crucial para o seu futuro próximo, no qual a autarquia terá de tomar decisões que conduzam a um equilíbrio entre todas as suas diversas realidades - habitantes, “utilizadores”, turistas - sob pena de ver diminuir drasticamente a qualidade de vida na cidade
Nos últimos anos, temos assistido a dois fenómenos com impacto na vida da cidade, dos seus cidadãos e de quem a visita - a massificação do turismo e a desertificação.
Se a massificação do turismo é um fenómeno relativamente recente, já a desertificação é uma realidade existente desde o início da década de 80, e ambos têm contribuído para alterar aquilo que chamo de ADN de uma cidade, e que são o conjunto de características que a diferencia das outras.
Em relação ao turismo e à sua massificação, fenómeno recente, este tem tido impacto essencialmente ao nível do sector imobiliário, ao nível do comércio e ao nível do desgaste dos equipamentos e espaços públicos, onde incluo a limpeza dos mesmos.
Nenhuma cidade está preparada para, de repente, receber um acréscimo permanente de “utilizadores” na ordem dos 10% da sua população. Diariamente estão em Lisboa dezenas de milhares de pessoas em viagem de turismo, e isso tem impacto ao nível da disponibilidade dos transportes, ao nível da quantidade de lixo que é produzida, ao nível do trânsito. A autarquia não preveniu esta situação, encontrando-se actualmente em muitos domínios desfasada das necessidades da cidade.
O turismo de cidades, ou os de mais curta duração (“city breaks”), foram potenciados nos últimos anos pelos voos “low cost”, permitindo a milhões de pessoas viajar de modo acessível para um determinado número de cidades, onde se inclui Lisboa. As razões que levam alguém a visitar uma cidade vão mais além do que a simples disponibilidade de voos baratos. No caso de Lisboa, um conjunto especifico de características atrai visitantes de todo o mundo: o bom tempo, o preço acessível, a gastronomia, a história e arquitectura da cidade. Estas características, conjuntamente com algumas mais, constituem o que chamo de “ADN da cidade”, aquilo que a permitiria identificar, mesmo por quem nunca tenha visto uma foto da mesma.
Se imaginarmos algumas dessas características a desaparecer, é fácil compreender o impacto que teria no interesse pela cidade. Num pais onde o turismo representa uma fatia importante do PIB, a redução drástica do turismo irá conduzir a um significativo aumento do desemprego e do rendimento disponível das famílias.
A gestão de qualquer cidade deve ter em conta as necessidades dos seus “utilizadores”, assim como o “ADN da cidade”. O equilíbrio destas duas vertentes permite criar uma cidade mais saudável e atrativa para todos, pois de outra forma, poderá agradar a uns mas desagradar profundamente a outros. E, apesar de profundamente “politicamente incorrecto” dizê-lo, não podemos ter em linha de conta apenas os aspectos saudáveis da cidade, como os espaços verdes, a ausência de tráfego automóvel, ou a ausência de ruído.
Afinal, o que é uma cidade, senão um espaço onde confluem milhares ou milhões de pessoas, com objectivos distintos, mas que em comum têm precisamente a cidade?
Em Lisboa, o actual executivo tem em algumas ruas, substituído a tradicional calçada portuguesa, por um piso diferente, mais confortável. Esta decisão, irá modificar o conjunto urbanístico dessas mesmas ruas, do qual fazia parte precisamente a calçada, tão característica da nossa cidade. Provavelmente, num referendo, uma parte da população desejaria a substituição da calçada, mas é precisamente aqui, que a adaptação das pessoas à cidade e não o contrário, ganha ênfase. Se há ponto onde nenhuma autarquia deve poder mexer é nas características intrínsecas da cidade que gere. Não há programa, ou promessa eleitoral, que valide destruir uma característica especifica de uma cidade. Caso contrário, corremos o risco da homogeneização urbana, perdendo identidade e sentimento de pertença.
A necessidade que a vida moderna criou da utilização do automóvel, exagerada ou não, é uma realidade das cidades de hoje, a qual não pode deixar de ser tida em linha de conta, sob pena de prejudicar a vida de milhões de pessoas. No entanto, o conjunto de veículos faz uso de uma área exagerada da cidade, quer através das estradas quer através dos espaços de estacionamento, limitando dessa forma o usufruto dessa mesma cidade. Este é um dos pontos onde o equilíbrio é fundamental e deve ser tão breve quanto possível corrigido, recuperando certos espaços para o usufruto dos cidadãos. Recordo que não há muitos anos, toda a Praça do Comércio era um enorme parque automóvel.
Impõe-se uma clarificação da capacidade de cada zona da cidade para receber automóveis, e controlar e limitar precisamente esse acesso. Não faz sentido gerir o espaço destinado aos automóveis sem saber exactamente qual a capacidade desse espaço, e informar os utentes desse valor. Quando alguém compra uma casa numa nova zona, deve ter acesso à capacidade da zona em termos de parque automóvel, e se a mesma está esgotada ou não. Senão iremos manter o que já sucede há 20 anos em Lisboa, e que são bairros completamente “atulhados” de automóveis ao final do dia, em completo desrespeito pelas regras de trânsito e pela qualidade de vida das pessoas.
A sensação de liberdade e imunidade em relação ao automóvel fez com que milhares de famílias não colocassem este factor como decisivo na escolha de uma determinada zona. Caso soubessem que não existiria lugar para parquear o automóvel, muito provavelmente pensariam melhor em relação à utilização do mesmo.
Em relação ao património imobiliário, e mais concretamente na zona histórica, tem-se verificado um aumento da descaracterização da mesma, sendo pela proliferação de elementos publicitários das lojas em “doses excessivas”, sendo pela aprovação e construção de novos edifícios com características estéticas claramente desfasadas do ADN do centro histórico. Também aqui é necessário criar limites.
Não devem continuar a ser permitidos projetos como a loja recentemente aberta no Rossio com o nome “Mundo Maravilhoso da Sardinha Portuguesa”, um “hino” ao mau gosto, numa das mais conhecidas praças da capital portuguesa. Não querendo influir em questões relacionadas com a liberdade económica, há limites para aquilo que deve ser permitido no centro da cidade. Caso contrário, deixamos de estar num espaço comum, para benefício de todos, mas apenas numa espécie de território sem regras.
Do mesmo modo, os elementos publicitários das lojas - toldos, chapéus, esplanadas, cartazes - não podem continuar em livre arbítrio apenas dependentes do pagamento de uma taxa.
Sou claramente a favor do turismo, mesmo deste turismo massificado. Afinal onde é que cada um de vós passa as suas férias? No entanto, o turismo não é impeditivo de mantermos e respeitarmos as características da nossa cidade. É o que acontece em várias cidades especialmente do norte da Europa.
Neste momento Lisboa tem um problema relacionado com o equilíbrio entre o turismo e o ADN da cidade. Mas é um problema fácil de resolver. Questões relacionadas com o lixo exigem apenas reorganização dos meios já existentes. Questões relacionadas com o património exigem bom senso e controlo. As questões relacionadas com transporte exigem reforço de meios.
Se a autarquia conseguir resolver estes problemas, a qualidade de vida em Lisboa aumentará exponencialmente, com claros benefícios para habitantes, “utilizadores” e economia local.
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Por Carlos Leite de Sousa
Fundador Streetics
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