Por António Albuquerque
Este artigo resulta de um comentário feito pelo António Albuquerque, aqui no blog, ao meu artigo Entrega da casa paga dívida? Por estar tão completo e ser tão informativo, achei que merecia mais destaque para poder ser lido e partilhado por mais leitores.
Obrigado António!
--
«A quantidade de informação falsa que tem sido publicada sobre este assunto nos últimos dias tem sido impressionante, não sei se por fome de títulos bombásticos, se por incrível ignorância jornalística. Mas isso é irrelevante para a questão que lançou à discussão – deve o colateral ser o único bem responsável pelo pagamento de uma dívida hipotecária, ou não?
Existem vantagens e desvantagens nos dois sistemas, mas, ao contrário do que indicou, em muitos países desenvolvidos, principalmente anglo-saxónicos, como os EUA, Reino Unido, Alemanha, etc., quando um crédito hipotecário não é cumprido, é o bem, e apenas o bem, que pode ser executado e responde pela dívida, nunca o devedor.
Voltando aos dois sistemas, vou tentar sistematizar as vantagens e desvantagens de cada um:
Sistema anglo-saxónico, e calvinista (é unicamente o colateral que responde pela dívida)
Vantagens:
1. Como ao realizar o empréstimo o banco assume o risco de evolução de valor do imóvel, partilhando esse risco com o devedor, será mais prudente no valor que disponibiliza, incorporando a volatilidade espectável do imobiliário.
2. Como o comprador, e devedor, tem que colocar muito mais fundos próprios na aquisição, também ele será mais prudente no valor que aceita pagar por qualquer imóvel.
3. Existe uma grande pressão da banca para que o mercado imobiliário seja transparente, e que existam dados estatísticos fiáveis sobre a variação de valor de imóveis ao longo do tempo.
4. Neste sistema, dada a necessidade de razoáveis fundos próprios na aquisição de habitação, o nível de poupança global é mais elevado.
5. O nível de alavancagem global do sistema tende a ser mais reduzido, evitando situações como a que actualmente vivemos. (sim eu sei, o sub-prime, mas isso é outra discussão…)
6. Sendo o risco partilhado, em ciclos económicos recessivos, a dor de perda de valor é mais suave, sendo partilhada entre devedor e credor.
Desvantagens:
1. Como o banco partilha o risco de valor com o devedor, os LTV serão sempre inferiores a 70%, reduzindo a capacidade de aquisição de habitação própria da maioria da população.
2. O número de proprietários de habitação própria será sempre minoritário.
3. A possibilidade de assunção de riscos de investimento por parte da maioria da população, num activo com que tem uma relação pessoal (habitação), e que será dos melhores activos de investimento familiar (pois existe a real possibilidade de “comer o bolo” e ainda ter “muito bolo” no fim) é muito reduzida.
4. Sendo o risco partilhado, em períodos recessivos, quando um crédito fica “underwater”, existe um incentivo ao incumprimento por parte do devedor, o que pode redundar num risco sistémico.
Sistema latino, e herdeiro do direito romano (é o devedor que responde pela dívida, independentemente do valor do colateral)
Vantagens:
1. Como o banco não partilha o risco de valor do colateral com o devedor, os LTV podem ser elevados, muitas vezes superiores a 100%, caso a expectativa de valorização futura seja optimista, aumentando a capacidade de aquisição de habitação própria da maioria da população.
2. A maioria da população tem oportunidade de adquirir habitação própria.
3. A maioria da população tem a possibilidade de assumir riscos de investimento, num activo com que tem uma relação pessoal (habitação), e que será dos melhores activos de investimento familiar, pois existe a real possibilidade de “comer o bolo” e ainda ter “muito bolo” quando quiser mudar para outro investimento, realizando mais valias.
4. Dado que o devedor assume todo o risco de desvalorização, o risco de incumprimento é mais reduzido em caso de desvalorização de activos, reduzindo o risco sistémico.
Desvantagens:
1. Como ao realizar o empréstimo o banco não assume o risco de evolução de valor do imóvel, será pouco prudente no valor que disponibiliza, negligenciando a volatilidade do valor dos activos imobiliários, focando-se apenas na capacidade conjuntural do devedor poder cumprir com o serviço de dívida.
2. Como o comprador, e devedor, poderá adquirir habitação com muito poucos fundos próprios, será pouco prudente no valor que aceita pagar por qualquer imóvel, favorecendo a aquisição por impulso de um bem de longa duração.
3. Neste sistema, dada a reduzida necessidade de fundos próprios na aquisição de habitação, o nível de poupança global será reduzido.
4. O nível de alavancagem global do sistema tende a ser elevado, provocando situações como a que actualmente vivemos, em que os credores externos que financiaram todo o sistema de repente se lembram que isto não é sustentável.
5. O sistema tende a paralisar a mobilidade laboral, forçando a imobilidade em ciclos recessivos, quando tal é mais necessário.
As vantagens e desvantagens podem ser equivalentes, embora possamos afirmar que em Bull Markets, o nosso sistema é favorável, e em Bear Markets são os nórdicos que têm razão. Na verdade, nunca nos questionámos sobre a justeza do nosso sistema de crédito hipotecário (latino) porque sempre convivemos bem com altas taxas de inflação, onde nominais valorizações escondem reais desvalorizações. Mas entrar no Euro implicou isto – que foi o mais importante choque de todos – começarmos a fazer contas.
Pessoalmente, prefiro o sistema de partilha de risco anglo-saxónico. Parece-me mais prudente, mais equilibrado, e sempre pressiona a transparência do mercado imobiliário porque todos lutamos.
Dito isto, e tendo conhecimento das recentes notícias que anunciam que o nosso governo se prepara para mudar as regras do crédito à habitação: Eu espero bem que os nossos governantes tenham presente que o maior valor é o da estabilidade legislativa, e que qualquer alteração não poderá nunca ter efeitos retroactivos.
Se querem mudar as regras do crédito à habitação para uma versão mais anglo-saxónica, em que só o colateral responde pela dívida, têm todo o meu apoio. Mas isso só se poderá aplicar a novos contratos, nunca nos anteriores!»
Este artigo resulta de um comentário feito pelo António Albuquerque, aqui no blog, ao meu artigo Entrega da casa paga dívida? Por estar tão completo e ser tão informativo, achei que merecia mais destaque para poder ser lido e partilhado por mais leitores.
Obrigado António!
--
«A quantidade de informação falsa que tem sido publicada sobre este assunto nos últimos dias tem sido impressionante, não sei se por fome de títulos bombásticos, se por incrível ignorância jornalística. Mas isso é irrelevante para a questão que lançou à discussão – deve o colateral ser o único bem responsável pelo pagamento de uma dívida hipotecária, ou não?
Existem vantagens e desvantagens nos dois sistemas, mas, ao contrário do que indicou, em muitos países desenvolvidos, principalmente anglo-saxónicos, como os EUA, Reino Unido, Alemanha, etc., quando um crédito hipotecário não é cumprido, é o bem, e apenas o bem, que pode ser executado e responde pela dívida, nunca o devedor.
Voltando aos dois sistemas, vou tentar sistematizar as vantagens e desvantagens de cada um:
Sistema anglo-saxónico, e calvinista (é unicamente o colateral que responde pela dívida)
Vantagens:
1. Como ao realizar o empréstimo o banco assume o risco de evolução de valor do imóvel, partilhando esse risco com o devedor, será mais prudente no valor que disponibiliza, incorporando a volatilidade espectável do imobiliário.
2. Como o comprador, e devedor, tem que colocar muito mais fundos próprios na aquisição, também ele será mais prudente no valor que aceita pagar por qualquer imóvel.
3. Existe uma grande pressão da banca para que o mercado imobiliário seja transparente, e que existam dados estatísticos fiáveis sobre a variação de valor de imóveis ao longo do tempo.
4. Neste sistema, dada a necessidade de razoáveis fundos próprios na aquisição de habitação, o nível de poupança global é mais elevado.
5. O nível de alavancagem global do sistema tende a ser mais reduzido, evitando situações como a que actualmente vivemos. (sim eu sei, o sub-prime, mas isso é outra discussão…)
6. Sendo o risco partilhado, em ciclos económicos recessivos, a dor de perda de valor é mais suave, sendo partilhada entre devedor e credor.
Desvantagens:
1. Como o banco partilha o risco de valor com o devedor, os LTV serão sempre inferiores a 70%, reduzindo a capacidade de aquisição de habitação própria da maioria da população.
2. O número de proprietários de habitação própria será sempre minoritário.
3. A possibilidade de assunção de riscos de investimento por parte da maioria da população, num activo com que tem uma relação pessoal (habitação), e que será dos melhores activos de investimento familiar (pois existe a real possibilidade de “comer o bolo” e ainda ter “muito bolo” no fim) é muito reduzida.
4. Sendo o risco partilhado, em períodos recessivos, quando um crédito fica “underwater”, existe um incentivo ao incumprimento por parte do devedor, o que pode redundar num risco sistémico.
Sistema latino, e herdeiro do direito romano (é o devedor que responde pela dívida, independentemente do valor do colateral)
Vantagens:
1. Como o banco não partilha o risco de valor do colateral com o devedor, os LTV podem ser elevados, muitas vezes superiores a 100%, caso a expectativa de valorização futura seja optimista, aumentando a capacidade de aquisição de habitação própria da maioria da população.
2. A maioria da população tem oportunidade de adquirir habitação própria.
3. A maioria da população tem a possibilidade de assumir riscos de investimento, num activo com que tem uma relação pessoal (habitação), e que será dos melhores activos de investimento familiar, pois existe a real possibilidade de “comer o bolo” e ainda ter “muito bolo” quando quiser mudar para outro investimento, realizando mais valias.
4. Dado que o devedor assume todo o risco de desvalorização, o risco de incumprimento é mais reduzido em caso de desvalorização de activos, reduzindo o risco sistémico.
Desvantagens:
1. Como ao realizar o empréstimo o banco não assume o risco de evolução de valor do imóvel, será pouco prudente no valor que disponibiliza, negligenciando a volatilidade do valor dos activos imobiliários, focando-se apenas na capacidade conjuntural do devedor poder cumprir com o serviço de dívida.
2. Como o comprador, e devedor, poderá adquirir habitação com muito poucos fundos próprios, será pouco prudente no valor que aceita pagar por qualquer imóvel, favorecendo a aquisição por impulso de um bem de longa duração.
3. Neste sistema, dada a reduzida necessidade de fundos próprios na aquisição de habitação, o nível de poupança global será reduzido.
4. O nível de alavancagem global do sistema tende a ser elevado, provocando situações como a que actualmente vivemos, em que os credores externos que financiaram todo o sistema de repente se lembram que isto não é sustentável.
5. O sistema tende a paralisar a mobilidade laboral, forçando a imobilidade em ciclos recessivos, quando tal é mais necessário.
As vantagens e desvantagens podem ser equivalentes, embora possamos afirmar que em Bull Markets, o nosso sistema é favorável, e em Bear Markets são os nórdicos que têm razão. Na verdade, nunca nos questionámos sobre a justeza do nosso sistema de crédito hipotecário (latino) porque sempre convivemos bem com altas taxas de inflação, onde nominais valorizações escondem reais desvalorizações. Mas entrar no Euro implicou isto – que foi o mais importante choque de todos – começarmos a fazer contas.
Pessoalmente, prefiro o sistema de partilha de risco anglo-saxónico. Parece-me mais prudente, mais equilibrado, e sempre pressiona a transparência do mercado imobiliário porque todos lutamos.
Dito isto, e tendo conhecimento das recentes notícias que anunciam que o nosso governo se prepara para mudar as regras do crédito à habitação: Eu espero bem que os nossos governantes tenham presente que o maior valor é o da estabilidade legislativa, e que qualquer alteração não poderá nunca ter efeitos retroactivos.
Se querem mudar as regras do crédito à habitação para uma versão mais anglo-saxónica, em que só o colateral responde pela dívida, têm todo o meu apoio. Mas isso só se poderá aplicar a novos contratos, nunca nos anteriores!»
1 comentário:
Ponto de vista muito interessante. Ninguém gosta que se mudem as regras a meio do jogo.
O problema é que a banca é a 1ª a quebrar essas mesmas regras. Quem trabalha no meio, quantos contratos recentes conhece, que à ultima da hora a banca quebrou unilateralmente?
Este assunto não se discute porque ninguém tem recursos para enfrentar a banca em tribunal, num pais de corrupção como o nosso. Esta alteração parece por base ter um bom principio, de inicio ficariamos todos prejudicados, mas a medio prazo é capaz de resultar em mais estabilidade para o comum dos mortais.
Sérgio Jorge
Enviar um comentário