Fazendo justiça ao preâmbulo da nossa Constituição, o Parlamento aprovou uma (contra)reforma do arrendamento urbano que visa, essencialmente, abrir caminho para uma sociedade socialista. De cariz comunista e soviético.
Comunista porque pretende, essencialmente, que os proprietários suportem, a suas expensas, subsídios à habitação e a um certo tipo de pequeno comércio. Soviética porque é autoritária, ressabiada e abertamente hostil aos direitos adquiridos dos cidadãos (proprietários).
A alteração partiu, naturalmente, de uma proposta do Partido Comunista Português (Projecto de Lei n.º 310/XII-2.ª), que foi acolhida quase na íntegra. Longe vão os tempos em que a Troika impunha a liberalização do mercado de arrendamento. Agora, são os comunistas quem decide sobre a afectação da propriedade privada imobiliária. E fazem-no – é forçoso reconhecê-lo – com a sanha revolucionária dos velhos tempos.
O diploma em causa é a Lei 43/2017, de 14 de Junho, cujo teor, até ser publicado no Diário da República (de 14 de Junho de 2017) era desconhecido do público. O site da AR anunciava que no dia 7 de Abril tinha sido votado e aprovado, na generalidade, a proposta de Lei do PCP. No entanto, o texto final aprovado não esteve disponível em nenhuma fonte oficial até à data da sua publicação. Este vosso correspondente temeu o pior, porque uma das propostas do PCP era – descaradamente – excluir do NRAU todos os contratos de arrendamento que à presente data ainda se mantivessem em regime vinculativo ou de perpetuidade. Este aparte é importante porque revela uma falta de transparência que – tendo em conta a importância social desta legislação em concreto – não me parece inocente.
Entretanto, no mesmo dia 14 de Junho, foi também publicada a Lei n.º 42/2017, que estabelece o regime das famosas “lojas históricas” e que veio colocar um dos entraves mais nefastos à propriedade privada e à liberdade de iniciativa económica deste novo regime.
Não faltam na Internet pequenos resumos destas alterações legislativas. Debrucemo-nos, assim, sobre as mais relevantes e respectivo impacto:
Da Lei 43/2017:
Arrendamentos Habitacionais
Nos contratos de arrendamento para fins habitacionais, em que o senhorio houvesse promovido a actualização ao abrigo do NRAU e o inquilino tivesse invocado um RABC inferior a 5 RMNA, a lei anterior determinava que o proprietário, durante 5 anos, tinha de suportar as carências económicas do inquilino, obrigando à indexação da actualização da renda ao rendimento do agregado familiar (de acordo com determinados patamares).
Infelizmente para os proprietários que tinham a expectativa de, dentro de pouco tempo, poderem, finalmente, actualizar a renda para o valor máximo permitido por lei (1/15 do VPT), o novo regime legal adiou-lhes essa possibilidade por mais 5 anos.
Era certo que, já em 2012, a opção do legislador de fazer recair sobre os proprietários o dever social de subsidiar os seus arrendatários mais desfavorecidos tinha sido objecto de duras críticas. Afinal de contas, por que razão os proprietários, tão castigados ao longo de tantos anos, tinham este ónus adicional?
Agora, na conjuntura mais próspera de que há memória no passado recente, os senhorios voltam a ser castigados com mais 3 ou 5 anos (consoante o inquilino tenha menos ou mais de 65 anos) de assistência forçada às carências económicas dos arrendatários. Porquê? Pode dizer-se que é porque ninguém se lembrou de criar o subsídio de renda de que falava o n.º 10 do art. 36.º do NRAU. Ou porque o PCP está no poder. Haverá várias respostas possíveis. Seja como for, é oficial: não há tutela de direitos nem de expectativas para os proprietários com arrendamentos antigos.
Outra novidade: no caso de arrendatários com o RABC inferior a 5RMNA, o senhorio tinha a confiança de que, após o decurso dos 5 anos em que o contrato não transitava para o NRAU, podia convertê-lo num contrato com termo de 2 anos. Com a nova lei, esses 2 anos converteram-se em 5.
Arrendamentos Não Habitacionais
No caso dos arrendamentos não habitacionais, as alterações são mais ofensivas, faltando-lhes sequer essa virtualidade de justiça social que, no sentir de alguns, justificaria as restrições ao direito de propriedade.
Os proprietários com inquilinos microempresas (a grande maioria) / associações culturais, recreativas, repúblicas de estudantes, etc., sabiam que, durante 5 anos, estavam de mãos atadas, visto que os respectivos contratos de arrendamento não podiam transitar para o NRAU, ou seja, permaneciam sem termo. Contudo, sabiam também que, após esse período, podiam convertê-los em contratos com prazo certo de 3 anos. E assim, com esses horizontes temporais (5+3 anos), fizeram-se aquisições e opções de investimento.
Com a nova lei, os 5 anos converteram-se em 10. E os 3 em 5. Se antes os proprietários tinham o horizonte de 8 anos para retomarem a propriedade plena dos seus imóveis (dando-lhes o destino que livremente entendessem), agora o horizonte são 15 anos (praticamente o dobro). E sem qualquer garantia que amanhã esse prazo não seja alargado para 20, 30, 40 anos.
Outra mudança importante são as novas restrições à faculdade de denúncia para obras:
Uma das alterações introduzidas pela Lei 31/2012 abriu caminho, só por si, a uma verdadeira revolução no mercado imobiliário português: a possibilidade de os senhorios denunciarem os contratos (antigos) para a realização, nos locados, de obras de remodelação ou restauro profundos, entendendo-se como tal todas as obras que obrigassem, para a sua realização, à desocupação do locado.
Este pequeno detalhe legislativo permitiu a entrada de investimento novo num mercado até então estagnado: quem se lembra como era, há não mais de seis anos, a baixa de Lisboa, o Cais do Sodré? Um repositório de prédios em avançado estado de decadência, cada um com o seu comércio obsoleto, que sobrevivia sustentado em rendas irrisórias. Como já aqui referi muitas vezes, mais dos que os inquilinos habitacionais, eram estes comércios que verdadeiramente tornavam inviável qualquer pretensão de reabilitação destes prédios. Os inquilinos pediam quantias insustentáveis para saírem dos locais, anulando qualquer rentabilidade ao investimento. E, pior que tudo, perpetuavam-se, porque, ao contrário das pessoas – que morrem – as empresas são tendencialmente eternas.
Ora, a partir de 2012, foi possível, pela primeira vez, pôr termo a estes arrendamentos, o que gerou uma verdadeira explosão no investimento e reabilitação dos imóveis nos centros das cidades.
Em 2014, o legislador começou a fechar esta porta, restringindo a possibilidade de denúncia às “obras de alteração, ampliação ou reconstrução, sujeitas a controlo prévio, nos termos do regime jurídico da urbanização e da edificação e do regime jurídico da reabilitação urbana”. Restrição, ainda assim, economicamente tolerável.
Com a nova lei (43/2017), passa a ser fundamento de denúncia somente um leque estreito obras de remodelação, e apenas se delas resultar um nível bom ou superior no estado de conservação do locado, e (ainda!) se o custo da obra corresponder a pelo menos 25% do valor patrimonial do locado. A que título surgem, agora, estas restrições tão arbitrárias? Não se compreende, nem se justifica. Mas que importa isso, quando o que se pretende, abertamente, é proteger os comércios castiços e obsoletos?
Da Lei 42/2017
Deixámos o pior para o fim: o corolário das restrições à propriedade privada – consagrado na Lei 42/2017, que estabelece o regime de reconhecimento e protecção de estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social local.
A partir de agora, estabelecimentos ou entidades “situados no locado (e que) tenham sido reconhecidos pelo município como de interesse histórico e cultural ou social local” (o conceito é tão vago quanto a margem de manobra que deixa aos municípios para classificarem os ditos estabelecimentos) não são passíveis de denúncia para obras de remodelação.
São assim arrasadas, de uma penada, as expectativas de vários proprietários e empresários que, nos últimos tempos tenham realizado investimentos com a expectativa legítima de poderem por fim aos arrendamentos comerciais. Para tutela de um novo direito fundamental ao comércio típico, o legislador coarcta o direito de propriedade, o mercado livre, a iniciativa privada. Aqui o que vale são as sondagens e os soundbytes populistas: e se na ordem do dia está acabar com a “gentrificação” e preservar o comércio tradicional, pois que se danem os direitos dos proprietários.
Bons negócios e – como dizia um amigo meu socialista – se possível com o dinheiro dos outros!
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Por Francisco Silva Carvalho,
Advogado
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