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segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Lojas com história

Defenda-se do mais recente ataque do Estado à propriedade privada

Falei aqui, no meu último post, da Lei 42/2017, de 14 de Junho, que criou o “regime de reconhecimento e proteção de estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social local”.

Como na altura apontei, este regime configura uma verdadeira aberração jurídica, na medida em que introduz uma limitação ao direito de propriedade sem qualquer contrapartida para o proprietário. A causa desta limitação é a defesa dos estabelecimentos pitorescos, titulares de rendas antigas, irrisórias, instalados em vários prédios espalhados pela cidade.

Para além da injustiça em si, este regime legal traduz-se num profundo retrocesso no âmbito da reforma do arrendamento urbano e do processo de reabilitação urbana das cidades.

Se em 2012, no centro da crise, a Troika conseguiu impor o que até então todos os partidos (do PCP ao próprio CDS) haviam bloqueado – a possibilidade de actualização das rendas antigas (ainda assim para valores administrativamente delimitados) e de denúncia dos respectivos arrendamentos para realização de obras de remodelação ou restauro, em 2016/2017, restaurada a confiança na solidez da economia nacional, essa porta começa a fechar-se. E a que velocidade!

Existem, neste momento, dezenas de proprietários a fazer contas à vida, ao verem arrasados os seus planos de negócio de promoção e/ou reabilitação imobiliária pelas restrições da nova lei, que procuram, desesperadamente, alguma forma de limitar os prejuízos em que incorrem.

Felizmente para alguns, em determinados casos pode haver esperança: em Lisboa, o processo de reconhecimento das lojas históricas foi realizado de forma apressada, sem cumprir os requisitos legais, e em violação flagrante do direito de audiência prévia e do dever de fundamentação.

Vejamos:

A figura das lojas históricas tem a sua génese em Lisboa. Já aqui avisávamos, em 2014, quando António Costa ainda era o presidente do município, que o maior obstáculo à reabilitação urbana era o próprio, com a sua defesa militante dos arrendatários idosos e das lojas históricas.

Foi assim que, em 2015, por via da Deliberação 99/CM/2015, de 25 de Fevereiro de 2015, foi instituído o programa “Lojas com História”. Nesta data, a classificação não comportava quaisquer limitações ao direito de propriedade – porque essa possibilidade não estava ao alcance da CML. Era um regime de conteúdo eminentemente programático, incentivando a CML a criar as condições para proteger estes estabelecimentos.

Ao abrigo deste programa, foram distinguidos pela CML, até à presente data, 82 estabelecimentos de “interesse histórico e cultural ou social local”, por via das Deliberações n.ºs 381/CM/2016 e 97/CM/2017. 

Assim que os partidos de esquerda ganharam a força necessária no Parlamento, instituiu-se a referida Lei 42/2017, que criou as limitações – que já conhecemos – para os proprietários de imóveis em que esteja instalado e em funcionamento um estabelecimento “interesse histórico e cultural ou social local”.

O n.º 1 do artigo 13.º da Lei n.º 42/2017 prevê que “Os municípios que tenham procedido ao reconhecimento de estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social local devem proceder à confirmação do mesmo ao abrigo dos critérios previstos no artigo 4.º da presente lei no prazo de 60 dias seguidos após a entrada em vigor da mesma”.

Em cumprimento desta norma, a CML, através do Despacho n.º 58/P/2017, equipara as lojas distinguidas como “Lojas com História” aos “estabelecimentos de interesse histórico e cultural ou social local”. Contudo, as referidas deliberações que distinguiram as 82 lojas com história não foram precedidos de audiência dos interessados directos nessa distinção (os proprietários), nem incluem a fundamentação que permita aferir, caso a caso, se os estabelecimentos em causa reúnem, efectivamente, as características e os requisitos definidos na lei.

Ora, qualquer processo administrativo deve assegurar a informação e audiência prévia de todas as pessoas que possam ter um interesse directo no acto em causa. No caso dos proprietários, não existe ninguém mais interessado do que eles no processo de classificação de um estabelecimento como de interesse histórico, visto que, como já vimos anteriormente, tal distinção comporta diversas restrições ao direito de propriedade.

A lei prevê uma excepção a esta obrigação de notificação dos interessados: quando “o número de interessados a ouvir seja de tal forma elevado que a audiência se torne impraticável, devendo nesse caso proceder-se a consulta pública, quando possível, pela forma mais adequada”. Contudo, esta excepção diz respeito àqueles casos em que um único acto afecta um número indeterminado (ou muito amplo) de interessados, como, por exemplo, a deliberação de autorização de um traçado de alta tensão. Nunca se poderá aplicar a um caso, como este, em que cada um dos estabelecimentos lojas é, necessariamente – como o determina a própria natureza do processo - objecto de uma apreciação individual para determinar se reúne as características e os requisitos que permitem a sua classificação como “interesse histórico e cultural ou social local”.

Parece-nos, assim, que o processo de distinção de lojas históricas levado a cabo pela CML não assegurou esses dois princípios (audiência dos interessados e fundamentação), pelo que se encontra ferido de ilegalidade. Isso poderá ter como consequência a invalidade de todos os actos que distinguiram estabelecimentos como de interesse histórico, o que poderá, em última instância, constituir a CML no dever de indemnizar todos esses proprietários pelo desvalor que essa classificação lhes causou.

Tristes dias estes em que vivemos, em que, habituados já à regular iniquidade dos actos da administração pública, o conforto que resta é a (igualmente comum) incompetência de quem os concebe e executa. Dependemos dela para nos podermos defender.

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Por Francisco Silva Carvalho
Advogado

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